segunda-feira, 31 de outubro de 2022

 MIGUEL D'ORS


LÓGICA TEOLÓGICA

                                                    A José Luis García Martín

Que eres omnipotente lo proclaman
las rosas, el Cevino, los otoños 
de Vermont, las gaviotas
y Concha Valladares.
                                   Por lo tanto,
haber hecho los lunes,
las albas ciudadanas
y las poetisas españolas
                                        tiene 
que haber sido por darnos
ejemplo de modestia.

                                        15-XII-1994


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LÓGICA TEOLÓGICA

                                           Para José Luis García Martín

Que és omnipotente proclamam-no
as rosas, o Cervino, as gaivotas 
e Concha Valladares.
                                   No entanto,
ter feito as segundas-feiras,
as albas citadinas
e as poetisas espanholas
                                        tem
que ter sido para dar-nos
exemplo de modéstia.

                                          15-XII-1994

domingo, 30 de outubro de 2022

GIOVANNI PASCOLI


I TRE GRAPPOLI

                                                                       
                                                                      a G. S. (GIACINTO STIAVELLI)

Ha tre, Giacinto, grapolli la vite.
Bevi del primo il limpido piacere;
bevi dell'altro l'oblio breve e mite;
                                         e.. più non bere:

chè sonno è il terzo, e con lo sguardo acuto
nel nero sonno vigila, da un canto,
sappi, il dolore; e alto grida un muto
                                        pianto già pianto.


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OS TRÊS CACHOS

                                                      Para G. S. (Giacinto Stiavelli)

Tem três, Giacinto, cachos a vide.
Bebe do primeiro o límpido prazer;
bebe do outro o olvido breve e ameno                                                                                                 e... depois não bebas:

que o sono é o terceiro, e como o olhar penetrante
no negro sono vigia, desde um canto,
repara, a dor; e alto chora um mudo
                                             pranto já chorado.

sábado, 29 de outubro de 2022

 FRANK O'HARA


RHAPSODY

515 Madison Avenue
door to heaven? portal
stopped realities and eternal licentiousness
or at least the jungle of impossible eagerness
your marble is bronze and your lianas elevator cables
swinging from the myth of ascending
I would join
or declining the challenge of racial attractions
they zing on (into the lynch, dear friends)
while everywhere love is breathing draftily
like a doorway linking 53rd with 54th
the east-bound with the west-bound traffic by 8,000,000s
o midtown tunnels and the tunnels, too, of Holland

where is the summit where all aims are clear
the pin-point light upon a fear of lust
as agony's needlework grows up around the unicorn
and fences him for milk -and yoghurt - work
when I see Gianni I know is thinking of John Ericson
playing the Rachmaninoff 2nd or Elizabeth Taylor
taking sleeping-pills and Jane thinks of Manderley
and Irkutsk while I cough lightly in the smog of desire
and my eyes water achingly imitating the true blue

a sight of Manahatta in the towering needle
multi-faceted insight of the fly in the stringless labyrinth
Canada plans a higher place than the Empire State Building
I am getting into a cab at 9th Street and 1st Avenue
and the Negro driver tells me about a $120 apartment
"where you can't walk across the floor after10 at night
not even to pee, cause it keeps them awake downstairs"
no, I don't like that "well, I didn't take it"
perfect in the hot humid morning on my way to work 
a little supper-club conversation for the mill of the gods

you were there always and you know all about these things
as indifferent as an encyclopedia with your calm brown eyes
it isn't enough to smile when you run the gauntlet
you've got to spit like Niagara Falls on everybody or
Victoria Falls or at least the beautiful urban fountains of Madrid
as the Niger joins the Gulf of Guinea near the Menemsha Bar
that is what you learn 9in the early morning passing Madison Avenue
where you've never spent any time and stores eat up light 

I have always wanted to be near it
though the day is long (and I don't mean Madison Avenue)
lying in a hammock on St. Mark's Place sorting my poems
in the rancid nourishment of this mountainous island
they are coming and we holy ones must go
is Tibet historically a part of China? as I historically
belong to the enormous bliss of American death                                                                                                                               1959


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RAPSÓDIA

Madison Avenue 515
porta para o céu? realidades 
detidas no alpendre e licenciosidade eterna
ou pelo menos a selva da avidez impossível
o teu mármore é bronze e as tuas lianas cabos de elevador
vibrando no mito da ascensão
a que me juntaria
ou declinando o desafio das atracções raciais
eles zunem (para o linchamento, meus caros)
enquanto por toda a parte o amor respira revolto
como passagem coberta unindo a 53ª à 54ª
o trânsito de leste com o de oeste para 8,000,000
ó túneis do centro e também os túneis da Holanda

onde está o cume em que os propósitos se clarificam
o ponto de luz sobre um receio de luxúria
quando o bordado da agonia cresce à volta do unicórnio
e o aprisiona para que dê leite - e iogurte -
quando vejo Gianni sei que pensa em John Ericson
tocando o 2º de Rachmaninoff ou em Elizabeth Taylor
tomando somníferos e Jane pensa em Manderley
e Irkutsk enquanto tusso ao de  leve na neblina do desejo
e os meus olhos humedecem dolorosamente imitando o verdadeiro   azul 

uma vista de Manahatta na agulha cimeira
visão multifacetada da mosca nolabirinto sem rumo
o Canadá planeia um edifício mais alto que o Empire State Building
apanho um táxi no cruzamento da Rua 9 com a 1ª Avenida
e o motorista negro fala-me de em apartamen de $120
"onde não se pode andar depois das 10 da noite
nem mesmo psra mijar porque se acorda os de baixo"
não. não gosto disso "bom, não fiquei com ele"
perfeito na manhã abafada húmida a caminho do trabalho
uma conversa comezinha para o moinho dos deuses 

tu estás lá sempre e sabes tudo acerca destas coisas
tão indiferente como uma enciclopédia na placidez dos teus olhos   castanhos
não é suficiente sorrir quando se atira a luva
tem de se cuspir em todos como se fosse as Cataratas do Niagara ou
as Cataratas de Victoria ou pelo menos as fontes urbanas de Madrid
quando o Niger desagua no Golfo da Guiné junto ao bar Menemsha
é o que se aprende de manhã cedo ao passar na Madison Avenue
onde nunca perdeste tempo e os armazéns devoram luz

sempre quis estar perto disso 
embora o dia seja longo (e não me refiro à Madison Avenue)
deitado numa rede na Praça de S. Marcos ordenando os meus   poemas
no alimento rançoso desta ilha montanhosa
eles estão a chegar e nós os santos temos de partir
o Tibete é historicamente parte da China? como historicamente
pertenço à enorme bênção da morte americana
                                                                                               1959

terça-feira, 25 de outubro de 2022

LUCIANO ERBA


IL TRANVIERE METAFISICO


Ritorne a volte il sogno in cui me avienne
di manovrare un tram senza rotaie
tra campi di patate e fichi verdi
nel coltivato le ruote non sprofondano
schivo spaventapassari e cappani
vado incontro a settembre, verso ottobre
i passeggeri sono i miei defunti.
Al risveglio rispunta il dubbio antico
se questa vida non sia evento del caso
e il nostro solo un povero monologo
di domande e risposte fatte in casa.
Credo, non credo, cuando credo vorrei
portarmi all'al di là un po' di qua
anche la cicatrice che mi segna 
una gamba e mi fa compagnia.
Già, ma allora? sembra dire in excelsis
un'altra voce.
Altra?


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O GUARDA-FREIO METAFÍSCO

Regressa âs vezes o sonho em que me acontece
manobrar um eléctrico sem carris
por campos de batats e figos verdes
no lavrado as rodas não se afundam
evito espantalhos e cabanas
vou de encontro a setembro, em direcção a outubro
os passageiros são os meus defuntos.
Ao acordar renasce a dúvida antiga
se esta vida não será produto do acaso
e o nosso apenas um pobre monólogo
de perguntas e respostas feitas em casa.
Creio, não creio, quando creio quereria
levar para o além um poucode cá
mesmo a cicatriz que me marca
uma perna e me faz companhia.
Sim, mas então? parece dizer in excelsis
uma outra voz.
Outra?

segunda-feira, 24 de outubro de 2022

 NEIDHART VON REUENTHAL

  Maio é rico:
leva, com passo firme,
o bosque nos seus braços,
cheio de folhas novas: o Inverno acabou.

  - Alegra-me o campo,
para a vista alegre maravilha,
que de nós se acerca:
dizia uma jovem bela, bem a quero acolher.

  Mãe, quero ir
ao campo, com rica companhia
e quero bailar de roda.
Há muito que não ouço o jovem cantar de novo.

  - Não, filha, não!
Foste criada 
pelo meu peito:
cumpre a minha vontade, não vás divertir-te com homens.

 - O que quero nomear
deveis conhecê-lo. 
Quero ir ter com ele.
Chama-se Reuenthal: a ela quero beijar.

  Os ramos verdecem
tanto, que quase se partem
as árvores contra a terra.
Sabei, querida mãe, que dormirei com o jovem.

  Querida e nobre mãe,
por mim muito se lamenta.
Não deverei agradecer-lhe?
Diz que sou a mais bela da Baviera até França.

domingo, 23 de outubro de 2022

 DURS GRÜNBEIN

NAS PROVÍNCIAS III
                                          (BOÉMIA)

O silêncio ao redor de uma toupeira morta,
No limite de um campo de trigo, é enganador.
Por baixo há um encontro de escaravelhos, armados
E de uniforme negro. Por cima gira um falcão
Com asas eriçadas, até que muda de rumo.
Como sapadores obstinados, formigas cavam
Uma trincheira ao longo da espinha. No interior
Os arames brilham, larvas nervosas
Na fita do telégrafo. Desde a guarnição do estômago
Comerciantes em casacos coloridos (ou serão repórteres)
Transportam notícias para toda a parte: cadáver, cadáver!
Apenas um gafanhoto, a um pulo e uma fuga de distância
Pressenye as nuvens e banha-se ao sol no silêncio
De um filósofo estóico.

sábado, 22 de outubro de 2022

CALÍMACO


Há, juro por Pan, por Dionisos,
fogo escondido debaixo das cinzas. 
Desconfio de mim; não me perturbem.
Quantas vezes regatos mansos
minaram muros. Temo, Menexanos,
que este réptil silencioso 
me invada e me entregue ao amor.


Kallignotos jurou a Ionis - ninguém 
(rapaz ou rapariga) lhe seria mais querido.
Jurou! - mas o provérbio diz: os deuses têm
ouvidos impenetráveis a juras de amantes.
Agora, arde de amor por um rapaz. Dela, pobre
rapariga, ouve-se-lhe tanto como de Megara.


Menoetas de Lyctus,
em oferenda a Serapis,
disse: "Presenteio-te com
o arco e o carcás;
os homens de Hesperis
ficaram com as flechas."


- "Charidas jaz junto a ti?" - Se te referes
ao filho de Arimmas de Cirene, sim."
- "Charidas, como é aí, em baixo?" - Muito 
  escuro."
- "E a ressureição?" - "Mentira." - "E Plutão?"
- "Um mito." - "Então acabou-se... - "O que
  digo
é a verdade. Se queres ouvir algo agradável,
um grande boi, no Hades, vale um tostão."

sexta-feira, 21 de outubro de 2022

 LI SHANG-YIN


CHUVA NOCTURNA: À MINHA MULHER NO NORTE

Perguntas-me quando regressarei: não sei a resposta.
De noite, a chuva de Outono, no monte Pa, enche o lago.
Quando, lado a lado, acenderemos uma vela, na varanda poente
E recordaremos o tempo da chuva nocturna no monte Pa?




quinta-feira, 20 de outubro de 2022

CHARLES SIMIC


DECEMBER

   It snows
and still the derelicts 
   go
carrying sandwich boards -

   one proclaiming
the end of the world
   the other
the rates of a local barbershop.


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DEZEMBRO

   Neva
e mesmo assim os desamparados
   continuam
a transportar cartazes em sanduíche -

  Um proclamando
o fim do mundo
   o outro
os preços de um barbeiro local. 

quarta-feira, 19 de outubro de 2022

 RUSSELL EDSON


THE MARIONETTES OF DISTANT MASTERS

     A pianist dreams that he's hired by a wrecking company to ruin a piano with his fingers...
    On the day of the piano wrecking concert, as he's dressing, he notices a butterfly annoying a flower in his window box. He wonders if the police should be called. Then he thinks maybe the butterfly is just a marionette being manipulated by its master from the window above.
     Suddenly everything is beautiful. He begins to cry.

     Then another butterfly begins to annoy the first butterfly. He again wonders if he shouldn't call the police.
     But, perhaps they are marionette-butterflies? He thinks they are, belonging to rival masters seeing whose butterfly can annoy the other's the most.

     And this is happening in his window box. The Cosmic Plan: Distant Masters manipulating minor Masters who, in turn, manipulating tiny butterfly-Masters who, in turn, are manipulating him... A universe webbed with strings!
     Suddenly it is all so beautiful; the light is strange... Something about the light! He begins to cry...


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AS MARIONETAS DE DONOS LONGÍNQUOS

   Um pianista sonha que é contratado por uma companhia de salvados para destroçar um piano com os dedos...
   No dia do concerto da destruição do piano, enquanto se veste, repara numa borboleta que atormenta uma flor no canteiro da janela. Pergunta-se se deverá chamar a polícia. Depois pensa que a borboleta pode ser apenas uma marioneta manipulada pelo dono desde uma janela mais acima. 
   De súbito tudo é maravilhoso. Ele começa a chorar.

   Depois outra borboleta começa a atormentar a primeira borboleta. De novo se pergunta se não deverá chamar a polícia. 
  Mas, não serão marionetas-borboleta? Acha que são, pertencendo a donos rivais observando que borboleta pode atormentar mais a do outro.
   E isto passa-se no seu canteiro. O Plano Cósmico: Donos Longínquos manipulando Donos inferiores que, por sua vez, estão a manipular Donos-de-borboletas minúsculos que, por sua vez, o estão a manipular a ele... Um universo entrecuzado de fios!
   De súbito é tudo maravilhoso; a luz é estranha... Algo que diz respeito à luz! Ele começa a chorar...
  



terça-feira, 18 de outubro de 2022

AUGUST KLEINZAHLER

RENO: HARD BOILED

(For Geoffrey O'Brien)

The RVs parked in the Comstock radiated heat,
waves of it. Reminds me of El Centro, Gladys said.
One June it was so hot you could only pick up two stations
on the radio.
                      But south of town you could still make out patches
of snow int he higher peaks over toward Steamboat and
   Virginia City.
 
Gladys had the sort of face that belongs in magazines
where you're not supposed to notice the face.
                                                                The hotel she found us
was one of those brick affairs with a fancy cornice
and Nevada Gothic in the doors and windows.
Probably elegant once, it now felt more like the backdrop
for a Jim Thompson novel, one that will never be filmed.

The old guy at the front desk was a top classic fit as well
with the cowboy tie, suspenders and tiny white mustache:
dapper, creased, and shiny to the tips of his pointy black boots.
Everybody was out of central casting that week,
even the drifters lounging around outside the Mission
or that beat-up little bungalow called House of Hope.
So when Eddie took a shiv in his gut that night
in the parking lot of Mr. D's Backstage Club
we were into the plot, Gladys, the killer and me,
whether we liked it or not.

My life's been a succession of Gladyses, I thought to myself, 
watching her pore over the Racing Form hours on end, 
smoking Chesterfields in her underwear.
                                                                  Late afternoon
she'd go catch the features race at the Sports Parlor
in the Flamingo and commence with the gimlets.
Meanwhile, she might as well have been reading the Talmud
she was so still and engrossed, except when she butted her smokes
on Goofy's snout in the joke ashtray she'd won at some casino.

I found myself on a bar stool later that evening
at Mr. D's next to a curiously solemn Englishman.
He smelled of prime rib, bourbon and sweat and kept sticking
five-spots in the panties of a young blonde who danced 
dirty for him while he just sat there and sipped his whiskey.

Between songs you could hear the freeway in the distance.
He was one of those gruff, blocky, northern English,
working class who said ruhf  (as in bow-wow) for rough.
You'd think he'd never seen a blonde in her kitchen before
the way he kept muttering -   
                                              Christ, you're buffed
(rhyming with ruhf'd) then something about a chubby he had on.

I decided to go outside and take some fresh air
When I ran into Lois, a high yellow girl from back East.
She was older than the others and used to know Gladys
from their Century 21 days over in Tahoe.
I checked out the giant billboard across the highway
with Sammy Davis and Roy Orbison look-alikes:
something about a forthcoming Night of Stars.

Dead stars, seemed like to me.
Lois knew I wasn't there for a couch dance.
Eddie and I go all the way back to lava lamps,
when we ran up and down the coast to Essenada.
Lois would have been just a scowling kid then,
pitching pennies against a wall in Brooklyn.

The Southern Pacific began roaring past  
 along the top of a ridge a few blocks behind us,
pulling eighty carloads of coal from Utah.
I suddenly picked up a whiff of her perfume.
It reminded me a little too well of car freshener.
That was an instant before she fell into my arms,
dead as the smoked trout Gladys had for dinner
at the Basque place, along with about seven gimlets,
on an evening that now seemed a lifetime away. 


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RENO: BEM COZIDO

(Para Groffrey O'Brien)

As roulottes estacionadas no parque de Comstock irradiavam calor,
em ondas.
                 Lembra-me El Centro, disse Gladys.
Um junho em que esteve tanto calor que só se conseguia sintonizar
duas estações.
                       Mas a sul da cidade ainda se podia descortinar   manchas
de neve nos picos mais altos na direcção de Steambot e
   Viginia City.

Gladys tinha o tipo de cara que pertence a revistas
onde não se supõe reparar na cara.
                                                O hotel que nos arranjou
era um desses de tijolo, velhos, com uma cornija extravagante
e Gótico de Nevada nas portas e janelas.
Provavelmente elegante, em tempos, agora parece mais o cenário
de um romance de Jim Thompson, um que nunca foi filmado.

O velho na recepção era um clássico topo de gama ajustado
à gravata de cowboy, suspensórios e bigode minúsculo, branco:
elegante, enrugado e brilhante até ao bico das botas negras,   ponteagudas.
Toda a gente estava fora do elenco principal nessa semana,
mesmo os vagabundos a vaguear junto à Missão
ou a esse escalavrado pequeno bungalow chamado Casa da   Esperança.
Por isso, quando, nessa noite, Eddie apanhou uma navalhada nas   tripas 
no parque de estacionamen do Backstage Club de Mr. D
estavamos dentro do enredo, Gladys, o assassino e eu,
gostassemos ou não.

A minha vida tem sido uma sucessão de Gladyses, pensei,
vendo-a debruçar-se horas sem fim sobre as apostas de cavalos,
fumando Chesterfields em roupa interior.
                                                                  Aos fins de tarde
ela ia assistir à corrida principal no Sports Parlor
no Flamingo e começar com os cocktails.
Entretanto, ela até poderia estar a ler o Talmude,
pois estava tão quieta e absorta, excepto quando apagava os cigarros
no focinho do Goofy no cinzeiro jocoso que ganhara nalgum casino.

Mais tarde, nessa noite , encontrei-me num banco de bar
no Mr. D, junto a um inglês curiosamente solene.
Cheirava a costeleta, bourbon e suor e insistia em enfiar
notas de cinco nas cuecas de uma jovem loura que dançava
para ele obscenamente enquqanto ele estava ali sentado e                      beberricava whiskey. 

Entre canções podia ouvir-se a estrada à distância.
Era um desses ingleses rudes, impassíveis, nortenhos,
da classe trabalhadora que dizia ruhf  (como se ladrasse) por rough.
Pensar-se-ia que nunca tinha visto uma loura de calcinhas
pela forma como persistia a murmurar
                                                              - Jesus, estás amarelado
(rimando com tramado), depois algo sobre um grosso que ele tinha.

Decidi sair e apanhar ar fresco
quando encontrei Lois, uma tipa alta, pálida, lá do Leste.
Era mais velha que os outros e conhecia Gladys
desde os dias de Century 21 em Tahoe.
Reparei nos anúncios gigantes do outro lado da estrada
com sósias de Sammy Davis e Roy Orbison:
algo sobre uma próxima Noite das Estrelas.
Estrelas mortas, foi o que me pareceu.
Lois sabia que eu não estava ali para uma dança de sofá.
Eu e Eddie regressámos até às lâmpadas fluorecentes,
quando subimos e descemos a costa para Ensenada.
Lois seria apenas uma miúda birrenta nessa altura,
atirando moedas contra um muro em Brooklyn.

O Southern Pacific começou a atroar
ao longo de uma cumeada alguns quarteirões atrás de nós,
arrastando oitenta vagões de carvão para Utah.
De repente assaltou-me uma lufada do seu perfume.
Lembrou-me um pouco demais de ambientador de carro.
Foi um instante antes de ela cair nos meus braços,
morta como a truta fumada que Gladys comera ao jantar
no restaurante basco, em conjunto com cerca de sete cocktails,
num serão que agora parecia à distância de uma vida.




sexta-feira, 14 de outubro de 2022

ALEKSANDAR RISTOVIC


ALGUNS ENTRAM NA TABERNA, OS OUTROS SAEM 


Alguns entram na taberna, os outros saem.
Há um prato de violetas e uma lâmpada acesa
na mesa e as duas pernas de alguém
apenas com peúgas debaixo dela.

Uma mulher inclina a cara para a minha.
O cordeiro também está na taberna, mas não o nomeamos assim.
Agora até podemos cheirar as flores 
na mesa vizinha, não apenas na nossa.

O que segurava o livro deixou-o cair.
Há uma chama azul no local onde o livro caiu.
O jovem criado carrega pequenas travessas
com rãs que estão prontas a saltar.

A minha mãe desce de uma escada alta.
Os seus dedos estão gelados e os pomos e a boca
estão quase brancos. Pode ouvir-se duas pessoas falarem
sem se ver nenhuma delas.

Sou um rapazinho a estudar inglês numa sala iluminada
por uma luz avermelhada. Uma mulher pequena, cujas mamas são
como dois ovos, está a ajudar-me. Alguém cujo nome
é Dylan Thomas juntou-se ao nosso jogo de estudante e professora.

Falamos um com o outro em surdina.
Em breve morreremos a mesma morte, mas em lugares distintos:
eu, numa pequena biblioteca com livros em desordem nas estantes,
tu, numa sala onde pessoas de sexos diferentes escondem a cara
   umas das outras. 

quinta-feira, 13 de outubro de 2022

 FERNANDO ORTIZ

DE VITA BEATA

¿Viajar? Viaje el que quiera, pero que a mí me deje
su coche en esa plaza que suelo frecuentar;
donde compro la prensa y hay un bar que me fía
- lo que viene muy bien si las cosas van mal -,
bancos donde sentarse cuando es invierno al sol
y árboles que en verano muy grata sombra dan.
¿Leer? Yo nunca leo, ojeo, aunque me gusta
ver los escaparates y también los stands
de alguna librería, boutique, zapatería...
Como español, me quejo de los juegos de azar
- ni un décimo premiado en treinta largos años -.
Y así, vamos tirando, pues pasó nuestra edad.


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DE VITA BEATA

Viajar? Viaje quem queira, mas que a mim me deixe
o seu carro nessa praça que costumo frequentar;
onde compro jornais e há um bar que me fia
- o que vem bem a calhar, se as coisas vão mal -
bancos onde sentar quando é inverno ao sol
e árvores que no verão dão muito grata sombra.
Ler? Eu nunca leio, folheio, ainda que goste
de ver os escaparates e também os stands
de alguma livraria, boutique, sapataria...
Como espanhol, queixo-me dos jogos de sorte
- nem um décimo premiado em trinta largos anos -
e assim, vamos andando, pois passou a nossa época.


quarta-feira, 12 de outubro de 2022

 D. J. ENRIGHT


Poem Translated from a Foreign Language


My mother once told me
Never to sleep with flowers in the room.
Since then I have never slept
With flowers.

I have slept with prostitutes
(But never with flowers in the room)
In general they were amiable
A few were not unhumorous
One was rather acid.

None of them smothered me.
One of them desired a silver pen
Another removed a traveller's cheque
But never my precious oxygen.

My mother never told me
Not to sleep with prostitutes in the room
She did not tell me to stay awake.
These days I sleep with pills
I sleep with daffodils in the room.


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Poema Traduzido de uma Língua Desconhecida


Em tempos, a minha mãe disse-me
Para nunca dormir com flores no quarto.
Desde então nunca dormi 
Com flores.

Dormi com prostitutas
(Mas nunca com flores no quarto)
Geralmente eram amáveis
A umas poucas não lhes faltava humor
Uma foi bastante cáustica.

Nenhuma me asfixiou.
Uma desejou uma caneta de prata
Outra  surripiou um traveller's cheque
Mas nunca o meu precioso oxigénio-

A minha mãe nunca me disse
Para não dormir com prostitutas no quarto
Não me disse para permanecer acordado.
Nestes dias durmo com pílulas
Durmo com narcisos no quarto.

terça-feira, 11 de outubro de 2022

 MIROSLAV HOLUB

COLISÃO

Pensar que podia estar morto,
disse para si mesmo, envergonhado, como se isso fosse 
uma maldição do coração, erguendo um feixe de ossos
à altura de um homem. Como se fosse, de súbito,
proibido até tocar palavras que tinham caído para o chão.
Além disso, tinha medo de encontrar
o seu corpo numa prensa de metal. Perturbador
até aos capilares.

O eléctrico estava encravado em cima dele,
como a proa de um limpador de neve e tudo o que sobrava do carro
era um pretzel grotesco com um pedaço arrancado
pela dentadura de um anjo demente.
Qualquer coisa escura pingava nos carris
e um espantoso vento esquálido folheava 
um livro ainda quente.

As pessoas formavam um círculo e com simpatia
surda-muda aguardavam a catarse da peça,
como vermes surgindo debaixo
das asas de um frango decapitado.
Ao longe soava o lamento de sirenes a aproximarem-se,
congelando no esganiçado ar condicionado desse dia
e desse minuto. Gotas de orvalho caíam
na nuca como detritos de 
dignidade atmosférica. Perturbador
até aos capilares.

Não, obrigado, eu espero, disse ele;
pois um filme mudo tinha começado a passar
sem subtítulos, sem cor e sem respostas.

      E que dizer dos monopolos magnéticos
escapando segundos depois do Big Bang,
protões violando a irreversibilidade do fluxo do tempo?

      Que dizer das gigantescas nuvens moleculares
por baizo dos ombros das galáxias, concebendo
os embriões das estrelas?

      Que dizer da solidão dos primeiros genes
acumulando amino-ácidos em rasos charcos primordiais,
à custa de agiotas entrópicos?

      Que dizer da estrela do mar ressequida
como garras de proto-águia enterradas no leito
de um mar a desaparecer?

      Que dizer das migrações mortais de aves
observando a inclinação do sol
e o rugido de hormonas sexuais?

      Que dizer do semi-louco orangotango
aprisionado, que vomita por
não ter mais que fazer?

      Que dizer dos ratos que durante mil anos
aprenderam a cantar e das rãs a balançar 
numa pata como a coxa 
de uma rainha de beleza da Mesopotâmia?

      Que dizer da poesia, um empreendimento
tão perturbador que torce as réguas
e aumenta o estrabismo dos inspectores escolares?

      E que dizer da rapariguinha
na enfermaria de leucemia que, na casa de banho,
tentou mostrar o tipo de bigode que o médico simpático tinha,
mas como os paus escanzelados das suas mãos deslizam 
pelo bordo da bacia e ela cai e logo
tenta uma e outra vez?

      E que dizer do intelectual tímido,
o professor que compreendeu o universo próximo,
mas se esqueceu das regras do trânsito?

Não, obrigado, disse ele a alguém de uniforme,
não necessito de nada. Os meus documentos estão no bolso,
mas não consigo alcançá-los. E procurou
sorrir a este embaraço na criação concluída.
É tudo culpa minha, disse,
obrigado.
                E então morreu.

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

 AURORA LUQUE

NEODANAIDES

             Se ha comprendido ya que Sísifo es el heroi absurdo. Lo es
               tanto por sus pasiones como por su tormento. [...] Sísifo,
             proletario de los dioses, impotente y rebelde, conoce toda la
          magnitud de su condición miserable [...] Homero nos cuenta
                          también que Sísifo había encadenado a la Muerte.
                                                                                                               ALBERT CAMUS

Castigadas. Las siempre castigadas. Nacer para el castigo.
Para llenar los cuencos, las bañeras,
los cubos de fregar, la fina copa,
la piscina infantil y la cisterna,
la zafa, el fregadero, las tazas y el bidé,
la lechera, la jícara, la olla.
Acarrear sin sin pausa las aguas de los días
y reponer las nunca llenas ánforas,
el cántaro, el lebrillo, los aljibes,
el frasco de perfume,
la botella de suero de la clínica
con su rumor de ánimas,
el bebedero de los animales.

Nosotras, castigadas, las nietas del río Nilo,
halladoras de fuentes, de regatos,
que perforamos rezumantes pozos,
que hicimos coronar de manantiales
a la árida Argos desahuciada.

Nosotras, Melanípides, las que entreviste en Siria,
ni mujeres ni hombres - no supiste que éramos,
de pura libertad inconcebible -
cabalgando por bosques soleados,
cazando a su placer, recogiendo los dátiles
y la casia y las lágrimas de incenso.

Nosotras, castigadas, El cedazo, la rota regadera,
los calderos en ruina. El agua se nos va
y ya no es nuestra. 
Porque a la Muerte atamos, como Sísifo.
A nuestra muerte le pusimos bridas.


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NEODANÁIDES
 
   Compreende-se se já que Sísifo é o herói absurdo. É-o tanto pelas     suas paixões como pelo seu tormento [...] Sísifo, proletário dos         deuses, impotente e rebelde, conhece toda a magnitude da sua           condição miserável [...] Homero conta-nos também que Sísifo           tinha acorrentado a Morte.
                                                                       ALBERT CAMUS

Castigadas. As sempre castigadas. Nascer para o castigo.
Para encher as malgas, as banheiras.
os cubos de limpar, as finas taças,
a piscina infantil e a cisterna,
a bacia, o lava-louça, os copos e o bidé,
a leiteira, a xícara, a panela.
Acarretar sem pausa as águas dos dias
e repô-la nas nunca cheias ânforas,
o cântaro, o pote, os algibes,
o frasco de perfume, 
o saco de soro da clínica,
com o seu rumor de almas,
o bebedouro dos animais. 

Nós, castigadas, as netas di rio Nilo,
descobridoras de fontes, de regatos,
que perfuramos transbordantes poços,
que fizemos coroar de mananciais
a árida Argos desesperada.

Nós, Melanípides, as que entreviste na Síria,
nem mulheres nem homens - não soubeste que eramos,
de pura liberdade inconcebível -
cavalgando por bosques soalheiros,
caçando a bel prazer, colhendo as tâmaras
e a cássia e as lágrimas de incenso.

Nós, castigadas. A peneira, o regador roto,
os caldeiros em ruínas. A água vai-se-nos
e já não é nossa.
Porque a Morte atamo-la, como Sísifo.
À nossa morte pusemos-lhe rédeas.

  FRANK O'HARA PISTACHIO TREE AT CHATEAU NOIR Beaucoup de musique classique et moderne Guillaume and not as one may imagine it sounds no...