terça-feira, 11 de outubro de 2022

 MIROSLAV HOLUB

COLISÃO

Pensar que podia estar morto,
disse para si mesmo, envergonhado, como se isso fosse 
uma maldição do coração, erguendo um feixe de ossos
à altura de um homem. Como se fosse, de súbito,
proibido até tocar palavras que tinham caído para o chão.
Além disso, tinha medo de encontrar
o seu corpo numa prensa de metal. Perturbador
até aos capilares.

O eléctrico estava encravado em cima dele,
como a proa de um limpador de neve e tudo o que sobrava do carro
era um pretzel grotesco com um pedaço arrancado
pela dentadura de um anjo demente.
Qualquer coisa escura pingava nos carris
e um espantoso vento esquálido folheava 
um livro ainda quente.

As pessoas formavam um círculo e com simpatia
surda-muda aguardavam a catarse da peça,
como vermes surgindo debaixo
das asas de um frango decapitado.
Ao longe soava o lamento de sirenes a aproximarem-se,
congelando no esganiçado ar condicionado desse dia
e desse minuto. Gotas de orvalho caíam
na nuca como detritos de 
dignidade atmosférica. Perturbador
até aos capilares.

Não, obrigado, eu espero, disse ele;
pois um filme mudo tinha começado a passar
sem subtítulos, sem cor e sem respostas.

      E que dizer dos monopolos magnéticos
escapando segundos depois do Big Bang,
protões violando a irreversibilidade do fluxo do tempo?

      Que dizer das gigantescas nuvens moleculares
por baizo dos ombros das galáxias, concebendo
os embriões das estrelas?

      Que dizer da solidão dos primeiros genes
acumulando amino-ácidos em rasos charcos primordiais,
à custa de agiotas entrópicos?

      Que dizer da estrela do mar ressequida
como garras de proto-águia enterradas no leito
de um mar a desaparecer?

      Que dizer das migrações mortais de aves
observando a inclinação do sol
e o rugido de hormonas sexuais?

      Que dizer do semi-louco orangotango
aprisionado, que vomita por
não ter mais que fazer?

      Que dizer dos ratos que durante mil anos
aprenderam a cantar e das rãs a balançar 
numa pata como a coxa 
de uma rainha de beleza da Mesopotâmia?

      Que dizer da poesia, um empreendimento
tão perturbador que torce as réguas
e aumenta o estrabismo dos inspectores escolares?

      E que dizer da rapariguinha
na enfermaria de leucemia que, na casa de banho,
tentou mostrar o tipo de bigode que o médico simpático tinha,
mas como os paus escanzelados das suas mãos deslizam 
pelo bordo da bacia e ela cai e logo
tenta uma e outra vez?

      E que dizer do intelectual tímido,
o professor que compreendeu o universo próximo,
mas se esqueceu das regras do trânsito?

Não, obrigado, disse ele a alguém de uniforme,
não necessito de nada. Os meus documentos estão no bolso,
mas não consigo alcançá-los. E procurou
sorrir a este embaraço na criação concluída.
É tudo culpa minha, disse,
obrigado.
                E então morreu.

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