domingo, 31 de julho de 2022

 W. H. AUDEN

THE MASSACRE OF THE INNOCENTS

II

SOLDIERS
When the Sex War ended with the slaughter of the Grandmothers,
They found a bachelor´s baby suffocating under them;
Somebody called him George and that was the end of it:
          They hitched up to the Army.
          George, you old debutante,
          How did you get up in the Army?


In the Retreat from Reason he deserted on his rocking horse
And lived on a fairy´s kindness till he tired from kicking her:
He smashed her spectacles and stole her cheque-book and                    mackintosh   
          Then cruised his way back to the Army.
          George, you old numero,
          How did you get in the Army?

Before the Diet of Sugar he was using razor-blades
And exited soon after with an allergy to maidenheads;
He discovered a cure of his own, but no one would patent it,
           So he showed up again in the Army.
           George, you old flybynight,
           How did you get in the Army?

When the Vice Crusades were over he was hired by some                      Muscovites  
Prospecting for deodorants among the Eskimos:
He was caught by a common cold and was condemned to the   whiskey mines,
          But schemozzled back to the Army.
          George, you old Emperor,
          How did you get in the Army?

Since Peace was signed with Honour, he's been minding his   business;
But, whoops, here comes His Idleness 
Just in tidy time to massacre the Innocents;
         He's come home to roost in the Army.
         George, you old matador,
         Welcome back to the Army.


III

RACHEL
      On the Left are grinning dogs, peering down into a solitude too deep to fill with roses.
      On the Right are sensible sheep, gazing up at a pride where no dream can grow.
      Somewhere in these unending wastes of delirium is a lost child, speaking of Long Ago in the language of wounds.
      Tomorrow, perhaps, he will come to himself in Heaven.
      But here grief turns her silence, neither in this direction, nor in that, not for any reason.
      And her coldness now is on the earth forever.


                        xxxxxxxxxxxxxxxxxx


O MASSACRE DOS INOCENTES

II

SOLDADOS
Quando a Guerra dos Sexos terminou com a matança das Avós,
Encontraram o filho de um bacharel sufocando debaixo delas:
Alguém chamou-lhe George e pôs um ponto final nisso:
              Alistaram-no no Exército.
              George, meu velho recruta, 
              Como foste parar ao Exército?

Na Retirada da Razão desertou no se cavalo de pau
E viveu da bondade de uma fada, até se cansar de a pontapear;
Esmagou-lhe os óculos e roubou-lhe o livro de cheques e a gabardina
             Depois rumou de novo para o Exército.
             George, meu velho pândego,                 
             Como foste parar ao exército?

Antes da Dieta do Açúcar ele usava lâminas de barbear,
Mas depressa se pisgou com uma alergia a virgindades;
Descobriu uma cura original, mas ninduém a patenteava,
            Por isso apareceu de novo no Exército.
            George, meu velho caloteiro,
            Como foste parar ao Exército?

Quando as cruzadas do Vício acabaram, foi alistado por alguns   moscovitas,
Que faziam prospecção de desodorizantes junto dos Eaquimós:
Apanhou uma constipação e foi condenado às minas de uísque,
            Mas esgueirou-se de volta para o Exército.
            George, meu velho Imperador,
            Como foste parar ao Exército? 

Desde que a paz foi assinada com Honra, tem tratado da vida;
Mas, catrapum, aí vem Sua Vadiagem, abotoando o uniforme,
Mesmo a tempo de massacrar os Inocentes;
             Ele voltou para amesendar-se no Exército.
             George, meu velho matador,
             Bem-vindo de volta ao Exército.


III

RAQUEL
         À Esquerda cães que arreganham os dentes, fitando uma solidão demasiado densa para encher com rosas.
         À Direita ovelhas tímidas pastando com um orgulho onde nenhum sonho pode medrar.
         Algures nestas vastidões intermináveis de delírio está uma criança perdida, falando no Passado na linguagem das feridas.
         Amanhã, talvez, com ela mesma se encontrará no Céu.
         Mas aqui a Dor empurra o seu silêncio nem nesta direcção, nem naquela, nem por qualquer motivo.
         E a sua frialdade está agora na terra para sempre.

terça-feira, 26 de julho de 2022

 LUCIANO ERBA

L’IPPOPOTAMO
forse la galleria che si apre
l’ippopotamo nel folto della giungla
per arrivare al fiume, ai curvi pascoli
di foglie nate a fuorma di cuore
forse il varco tra alberi i liane
gli ostacoli divelti, le improvvise
irruzioni d’azzurre nelle tenebre
su un umido scempio di orchidee
forse questo e qualsiasi tracciato
come a Parigi la Neuilly-Vincennes
o l’umile “infiorata” di Genzano
o un canale di Marte, altro non sono
che eventi privi d’ombra e di riflesso
soltanto un segno che segna se stesso.


                     xxxxxxxxxxx


O HIPOPÓTAMO

porventura a galeria que abre
o hipopótamo na selva densa
para chegar ao rio, aos prados inclinados
de folhas que brotam em forma de coração
talvez a passagem entre árvores e lianas
os obstáculos arrancados, as imprevistas
erupções de azul nas trevas
sobre uma destruição húmida de orquídeas
talvez isso e qualquer outro traçado
como em Paris o Neuilly-Vincennes
ou a humilde “floração” de Genzano
ou um canal em Marte, não sejam mais
que ocorrências privadas de sombra e de reflexo
apenas um sinal que a si mesmo se assinala.


segunda-feira, 25 de julho de 2022

WALTER VON DER VOGELWEIDE

   Desde que chegou o Verão
e que as, flores entre a erva,
alegres brotaram,
os meus passos dirigiram-me
para onde cantam os pássaros:
era um grande prado,
onde manava uma clara fonte:
pelo bosque corria a água
e cantava o rouxinol.

  Junto à fonte crescia uma árvore:
ali tive um sonho:
afastando-me do sol
fui até à fonte,
para que a tília 
me desse sombra fresca. 
Sentado junto à fonte
eaqueci a minha dor
e, por fim, adormeci.

  De imediato pareceu-me
que todas as terras eram minhas,
como se a minha alma estivesse
no céu, sem dor
e como se o meu corpo pudesse
cumprir os seus caprichos.
Que Deus veja e preserve:
nunca houve sonho mais belo.

  Feliz teria ali sempre dormido,
mas uma maldita gralha
começou a grasnar.
Que todas as gralhas sofram
aquilo que lhes desejo!
Tirou-me grande alegria 
e o seu grasnido deu-me medo:
se, por ali, houvesse pedras
teria sido o seu último dia.

  Uma dama extremamente velha
devolveu-me o consolo.
Comecei a perguntar-lhe:
explicou-me, em pormenor,
o significado do sonho.
Ouvi-o, querida gente.
"Dois mais um fazem três;
e, além disso, acrescentou,
o meu polegar é um dedo."

domingo, 24 de julho de 2022

 DURS GRÜNBEIN

E tu? Esqueceste as tuas origens?
Começas a entender quanto dano foi causado
Por tantos anos de humilhação e farsa?
Que país, em que uma palavra sobre um tópico
Provoca mais que o indizível
Ficar por dizer!
                                       Que voz
É engolida durante a tentativa de mastigarem as tuas bugigangas?
Para atingir de imediato o que está a acontecer, e o que não 
Pode ser sofisticação.
                                    Nesta instância, foi letargia
Que te levou a prestar atenção a essa morte cerebral por exaustão.
O que é a vida, afinal? Tudo substituível
Onde a hipnose reina, o meu dever custe o que custar.
Não te iludas, no paraíso dos cães
Mijar num tronco de árvore é a substância dos sonhos.

sábado, 23 de julho de 2022

 TEÓCRITO

Viajante, olha bem para esta estátua
e quando regressares a casa, diz: "Em Teos
vi uma estátua de Anacreonte,
um dos maiores poetas de outrora."
Se acrescentares que apreciava rapazes
terás, por completo, descrito o homem. 

quinta-feira, 21 de julho de 2022

LI SHANG-YIN

PRIMEIRO MÊS: EM CASA DE CH'UNG-JAN

Escondido atrás de ferrolhos e barras duplas, cobertas de musgo,
No fundo dos corredores, nos quartos mais recônditos, deambulo.
Um presságio de que irá levantar-se vento: a auréola à volta da lua.
Ainda a estação das geadas, os botões por desabrochar.
Um morcego atravessa a persiana. Inquietação sem fim.
Um rato perturba a teia de aranha na janela, alarmado por suspeitas        breves.
Á luz da lâmpada, falo a uma fragrância que persiste no ar
E, como antes, desprevenido, canto "Levanta-te Na Noite E Vem".

quarta-feira, 20 de julho de 2022

 CHARLES SIMIC

HISTORY BOOK

A kid found its loose pages
On a busy street
He stopped bouncing his ball
To run after them.

They fluttered from his hands
Like butterflies.
He could only glimpse
A few names, a date.

At the outskirts the wind
Took them high.
They were swept over the used-tire dump
Into the grey river,

Where they drown kittens -
And the barge passes,
The one they named Victory
From which a cripple waves.


          xxxxxxxxxxxx


LIVRO DE HISTÓRIA

Um miúdo encontrou as suas páginas soltas
Numa rua movimentada
Deixou de jogar à bola 
Para persegui-las.

Elas escaparam das suas mãos
Voando como borboletas.
Apenas pôde entrever.
Alguns nomes, uma data.

Nos arredores o vento
Fê-las subir.
Foram arrastadas sobre o depósito de pneus usados
Em direcção ao rio cinzento,

Onde afogam os gatinhos -
E a barcaça desliza,
Aquela que crismaram Vitória
De onde um aleijado acena.


sábado, 16 de julho de 2022

RUSSELL EDSON 

THE DAINTY ONE

     I had remained in bed longer than it usually takes one's fatigue to drain off.
      Very often there is a song one must sing the whole night through; it repeats, and there is no stopping it. One beats it out with one's canine teeth, or one's toes. It is a musical tic.
     I have heard it said that it is a message one dares not hear. In the dark the unconscious is a dangerous thing. I prefer "Melancholy Baby"  to what else I might hear. And so I listen all night to "Melancholy Baby", gnashing each syllable with my teeth.

     One feels that thigs are about to change. I have felt this all my life. It is a readiness that robs every act of meaning, making every situation obsolete, putting the present into the past.

     A man is a series of objects placed in a box, the sound of a train, the sounds of his own  liquids trickling through the intimate brooks of his body, a certain number of bones, tree shadows that fall through the flesh as nerve patterns, or blood vessels; pourings, esxchanges, disconnections...

     Improvisation mounted in a piece of meat, lying abed in the night. "Melancholy Baby" over and over. Slowed. Out of time... Each syllable again and again...


                          xxxxxxxxxxxxxxxxxxx


O REQUINTADO

     Eu permanecera na cama mais do que é habitual para que a fadiga desapareça.
     Há muitas vezes uma canção que se tem de cantar pela noite dentro; ela repete-se, e não há forma de a parar. Marca-se o ritmo com os caninos ou os dedos dos pés. É um tique musical.
     Ouvi dizer que é uma mensagem que não se ousa ouvir. No escuro o inconsciente é uma coisa perigosa. Eu prefiro "Melancholy Baby" a qualquer outra que possa ouvir. Por isso, levo a noite inteira a ouvir "Melancholy Baby", rangendo os dentes em cada sílaba.

     Sente-se que as coisas estão para mudar. Eu senti isto toda a minha vida. É uma disponibilidade que rouba significado a qualquer acto, tornando qualquer situação obsoleta, colocando o presente no passado.

     Um homem é um conjunto de objectos colocados numa caixa, o som de um comboio, os sons dos seus próprios líquidos correndo pelos regatos intímos do seu corpo, um certo número de ossos, sombras de árvores que correm pela carne como redes de nervos, ou vasos sanguíneos; torrentes, trocas, desconexões...

     Improvisação erguida numa peça de carne, deitada na cama à noite. "Melancholy Baby" uma vez e outra. Mais lenta. Fora de tempo... Cada sílaba uma vez e outra...

sexta-feira, 15 de julho de 2022

 AUGUST KLEINZAHLER

CAT IN LATE AUTUMN             


Minou sleeps all day. Old
               soldiers with bum radios
stuck in downtown residence hotels
               see more light
than Minou.
              Sundays,
when rain streams off fire escapes,
              plunging into alleys,
and what little is left of light
              on the street comes off
olive oil cans from Lucca and the groves
              near Córdoba
in a window with pears, dish soap
              and nuts, Minou
looks nearly dead, a forepaw draped on top
              of his head. He's way 
out there, sunk deep        
              in the textured rayon
of a buff-colored cushion. His whiskers'
              occasional twitch: you see
the heart jump in his fur
              as he stalks the perimeter
of an enormous dream, rain
              turning so heavy near dusk
night slips in 
              without you even noticing.


          xxxxxxxxxxxxxxxxxx


GATO NO FIM DO OUTONO

Minou dorme o dia todo. Velhos
             soldados com rádios estridentes
enfiados em lares do centro
             vêem mais luz
que Minou.
             Aos domingos
quando a chuva escorre pelas escadas de incêndio,
             despenhando-se nos becos,
e o pouco que sobra de luz
             na rua tem origem
em latas de azeite de Lucca e dos pomares
             junto a Córdoba
numa janela com peras, sabão da louça
             e nozes, Minou
parece quase morto, uma pata dianteira por cima
             da cabeça. Está
lá fora, enterrado fundamente
             na textura de plástico
de uma almofada bege. Os seus bigodes
             estremecem de vez em quando - vê-se
o coração saltar-lhe no pêlo
             enquanto persegue o perímetro
de um sonho imenso, a chuva
             ficando tão densa perto do crepúsculo
que a noite se introduz
             sem que sequer se repare.

quinta-feira, 14 de julho de 2022

 ALEKSANDAR RISTOVIC

COMPARAÇÃO

Dizem que Ulisses não gostava do mar,
e, por isso, foi o cativo
de brisas marítimas, de tempestades e ondas
que são como cobertas de cama rendadas.
O mesmo acontece comigo. Não gostando de poesdia
e ainda assim rendido a ela, tornei-me o seu cativo
e não posso oferecer ao leitor mais que mesmo.
Como alguém que continuamente muda 
de remos para vela e vice-versa, apostando tudo
numa história em que não será reconhecido
entre as imagens cuidadosamente escolhidas:

sem esse porco,
sem esse morango no jardim,
sem esse fumo de cachimbo.
Sem essa espuma na boca.
Sem essa roda.
Sem essa mão sobre a qual passa a roda,
enquanto rola esmagando gravilha
paralela a outra roda.

quarta-feira, 13 de julho de 2022

FERNANDO ORTIZ

EL TIPO AQUÉL 

Ahora al personaje literario
- el mismo que os habló desde mi verso -
yo lo deshago, digo, y lo disperso
como al humo dispersa el incensario.

Fue siempre un paseante solitario
que, haciendo de su ombligo el universo,
dio enver del mundo sólo el lado adverso.
Un sujeto tristón. Un perdulario.

Quien lo inventó no quiere ni hablar de él,
pues cada día se le acerca más
con su paso apagado y quejumbroso.

Oírle me resultaba ya enfadoso.
Para penas las mías; y además
me da un poco de grima el tipo áquel. 


               xxxxxxxxxxxxx


AQUELE TIPO

Agora ao personagem literário
- o mesmo que vos falou desde o meu verso -
desfaço-o, digo, disperso-o
como o incensório dispersa o fumo.

Foi sempre um passeante solitário
que, fazendo do seu umbigo o universo
deu em ver do mundo só o lado adverso.
Um sujeito tristonho. Um perdulário.

Quem o inventou nem quer falar dele,
pois cada dia lhe fica mais próximo
com o seu passo apagado e queixoso.

Ouvi-lo já me resulta enfadonho.
Para penas, as minhas; e, além disso,
arrepia-me um pouco aquele tipo.

terça-feira, 12 de julho de 2022

 D. J. ENRIGHT

VERY CLEAN OLD MAN

Do you know that land? -
Where the nocturnal tiger
Empties the rubbish bins,

Where the deathless mosquito
Stings the flesh to life
And the body runs with oils!

This splendid desk of teak
I brought from that lost land,
Large, larger than my room -

Now in this temperate clime
Cracks have run across it,
Large, larger every day.

My nails slipped through them, 
Then my fingers - next
my typewriter...

If you change your country
Change while you are young,
Before your bones go brittle
And your life cracks across.

These suburbs of the West,
Dog-haunted, dream
Of soap powders, and the wind
Empties the rubbish bins...

Maybe you should try the moon
- You cracked old man -
Once they dust it down.


            xxxxxxxxxxxx


VELHO MUITO ASSEADO

Conheces essa terra? -
Onde o tigre nocturno 
Esvazia os caixotes do lixo.

Onde o mosquito imortal
Pica a carne para a vida
E o corpo funciona a óleo!

Esta esplêndida secretária de teca
Que trouxe dessa terra perdida,
Espaçosa, mais espaçosa que a minha sala -

Agora neste clima temperado
Está atravessada por rachas 
Grandes, maiores dia a dia.

As minhas unhas deslizaram por elas,
Depois os meus dedos - a seguir
A minha máquina de escrever.

Se mudares de país
Muda enquanto és jovem,
Antes de os ossos ficarem quebradiços
E a tua vida rachar por eles.

Estes subúrbios do Oeste,
Assolados por cães, sonham
Com pós de sabão e o vento
Esvazia os caixotes do lixo...

Talvez devesses tentar a lua
- Tu, velho rebentado -
Desde que eles a varram.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

 MIROSLAV HOLUB

DOMINGO

Os corredores da Maratona atingiram o ponto de viragem:
Domingo, o dia de canções tristes
junto à ponte de caminho de ferro
e das nuvens.
                       Os teus olhos, no zénite -
e dizer isto sem usar o corpo é
como correr sem tocar no solo.
                      Há trinta anos
passou aqui um transporte, vagões abertos
carregados de silhuetas,
com cabeças e ombros cortados
no papel negro do horror.
E estas pessoas amavam alguém,
mas o comboio regressava vazio
todos os domingos, apenas
alguns ganchos de cabelo
e cinzas
no soalho do vagão.

Quem sabe como tocar no solo,
quem sabe como não tocar no solo?
Não se pode não acreditar
na existência da linha de chegada da Maratona
dentro de duas horas e quarenta minutos,
entre o barulho ensurdecedor das nuvens
e vagões abertos vazios
sobre a ponte do caminho de ferro.

domingo, 10 de julho de 2022

 AURORA LUQUE

ESPIGAR

                                                                               A Agnès Varda
                                                        y al LP  La rosa del azafrán que había en mi casa

La segunda existencia de las cosas
derecho de espigueo
le glâneur/ la glâneuse

un edicto del siglo dieciséis autorizaba
a espigar a los pobres después de la cosecha
tras la puesta del sol
y antes de amanecer

esta mañana muy tempranico
coros de espigadoras encerradas
en un círculo negro de vinilo
hambre de trigos vístete de canciones
hambre de canciones sáciate de pasiones diminutas

por los carriles de los rastrojos
la espigada
la muchacha-espiga pasó a ser la mujer espigante

                                       si a tu lado me aguarda un querer
                                        no me importaban los aires ni el sol
                                       ni que arranques de cuajo la mies

Agnès glâneuse de nuevo va a nombrar
este desatendido microamor hacia el mundo

- Dos momentos son buenos
para espigar moluscos en la arena
después de las tormentas fabulosas
o tras la alta marea
(pues llega la tormenta de la trágica muerte
desordena lo alzado en las orillas
y has de salir descalza solitaria
a espigar los residuos de ánima y de ánimo
caracolas con un poco de carne
salada y comulgable)

Agnès ha regresado de Japón
la espigadora con su esportilla
entra en su casa vieja
trae su maleta llena de trouvailles
soy la hormiguita de los despojos
- Hormiguea y espiga, mas no pierdas
tu musical carácter de cigarra
canta la dignidad de lo que arrastra vida con ahínco
nadie escriba por ti la canción de lo útil

por eses trigos van ellas solas
y se engalanan con amapolas
la mujer espigante pasó a ser la anciana espigadora

Agnès filma su mano izquierda con una
cámara en la derecha
y encuentra a un animal autónomo.
- Me gusta ser vieja, creo . dice

Y como tiene muy buenos ojos
espiga a veces de los manojos

Varda espiga espigadores.
Me quisiera enrolar
                                 ser una de las suyas
en los silencios de horas despojadas
contra el mundo que eleva vacíos deslumbrantes
y luminosas nadas flatulentas
que fabrica furiosamente ruidos
y ficción de alimentos impolutos

ir detrás de las hoces
cuidando los descartes
espigas en el borde nodoso de la acequia
manzanas olvidadas en lo alto de las ramas
la carne irregular la piel manchada
los malformados frutos
las horas malvividas calientes y deformes
palabras averiadas
que olvidamos guardar
y están a la intempiere entre los surcos

levantarse y volverse a agachar
todo el día a los aires y al sol
si acricio lo roto entre mis manos
volverá a germinar

¿y si escribir no fuera
sino un himno al final de la cosecha
sino un recolectar despreocupadas
aceitunas o díscolas espigas
o un racimo en la helada

celebrar la segunda existencia de las cosas
recuperar la vida que acusaron de inútil
el amor del camino?

Ten memoria de mí, segadora


                  xxxxxxxxxx


RESPIGADORA

                                                                              Para Agnès Varda
                e para o LP La rosa del azafrán que havia na minha casa

A segunda existência das coisas
direito de respigar
le glâneur/la glâneuse

um édito do século dezasseis autorizava
os pobres a respigar depois da colheita
depois do pôr do sol
e antes de amanhecer

esta manhã muito cedinho
coros de respigadoras encerrados
num círculo negro de vinil
fome de trigo veste-te de canções
fome de canções sacia-te de paixões diminutas

pelos sulcos do restolho
a respigada
a rapariga-respiga passou a se a mulher respigante

                                                  se a teu lado me aguarda um desejo
                                                  não me importam os ares nem o sol
                                                  nem que arranques pela raíz a messe 

Agnès glâneuse de novo vai nomear 
este desatendido microamor pelo mundo

- Dois momentos são bons 
para respigar moluscos na areia
depois das tormentas fabulosas
ou a seguir à maré alta
(pois chega a tormenta da trágica morte
desordena o alçado nas margens
e irás sair descalça solitária
a respigar os resíduos de alma e de ânimo
búzios com um pouco de carne
salgada e comungável)

Agnès regressou do Japão
e respigadora com o seu abanador
entra na sua casa velha
traz a sua maleta cheia de trouvailles
sou a formiguita dos despojos
- Formigueia e respiga, mas não percas
o teu musical carácter de cigarra
canta a dignidade do que arrasta vida com afinco
ninguém escreva por ti a canção do útil

por esses trigos só elas vão
e enfeitam-se com papoilas
a mulher respigante passou aser a anciã respigadora

Agnès filma a sua mão esquerda com uma 
câmara na direita
e encontra um animal autónomo
- Gosto de ser velha, creio . diz

E como tem muitos bons olhos
respiga por vezes dos molhos

Varda respiga respigadores.
Quereria alistar-me
                                ser uma das suas
nos silêncios de horas despojadas
contra o mundo que eleva vazios deslumbrantes
e luminosos nadas flatulentos
que fabrica furiosamente ruídos
a ficção de alimentos impolutos

ir detrás das foices
cuidando das sobras
espigas na margem lodosa da acéquia
maçãs esquecidas no cimo dos ramos
a carne irregular a pele manchada
os malformados frutos
as horas mal vividas quentes e disformes
palavrasa avariadas
que olvidamos guardar
e estão na intempérie entre os sulcos

levantar-se e voltar a agachar-se
todo o dia aos ares e ao sol
se acaricio o rosto entre as mãos
voltará a germinar

e se escrever não fosse
senão um hino ao final da colheita
senão uma recolha de despreocupadas
azeitonas ou díscolas espigas
ou um rácimo na geada

celebrar a segunda existência das coisas
recuperar a vida que acusaram de inútil
o amor do caminho?

Lembra-te de mim, segadora

sexta-feira, 1 de julho de 2022

PABLO GARCÍA CASADO

COLMENAS

Todo lo que ocurre, todo lo que no puedo ver. Esa espe-
sa gelatina que impide mirar más allá de las persianas.
El dolor pero también el baile, flores pero también dine-
ro, devuélveme ese dinero, es mío, lo gané con mis propias
manos. Los hijos que salen de los cuartos hacia la muer-
te, los teléfonos que suenan en medio de la noche, como
un espanto, esa luz que se enciende apresurada en la esca-
lera, es una niña, se parece a ti, la esperanza que hierve
en cada celda. Todo lo que ocurre y que está más allá de
mis ojos.


            xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx


COLMEIAS

Tudo o que ocorre, tudo o que não posso ver. Essa espes-
-sa gelatina que impede que se olhe para lá das persianas.
A dor, mas também o baile, flores, mas também dinhe-
ro, devolve-me esse dinheiro, é meu, ganhei-o com as próprias
mãos. Os filhos que saem dos quartos em direcção à mor-
te, os telefones que tocam a meio da noite, como
um espanto, essa luz que se acende apressada na esca-
da, é uma menina, parece-se contigo, a esperança que ferve
em cada célula. Tudo o que ocorre e está para lá dos
meus olhos.

  FRANK O'HARA PISTACHIO TREE AT CHATEAU NOIR Beaucoup de musique classique et moderne Guillaume and not as one may imagine it sounds no...