domingo, 10 de julho de 2022

 AURORA LUQUE

ESPIGAR

                                                                               A Agnès Varda
                                                        y al LP  La rosa del azafrán que había en mi casa

La segunda existencia de las cosas
derecho de espigueo
le glâneur/ la glâneuse

un edicto del siglo dieciséis autorizaba
a espigar a los pobres después de la cosecha
tras la puesta del sol
y antes de amanecer

esta mañana muy tempranico
coros de espigadoras encerradas
en un círculo negro de vinilo
hambre de trigos vístete de canciones
hambre de canciones sáciate de pasiones diminutas

por los carriles de los rastrojos
la espigada
la muchacha-espiga pasó a ser la mujer espigante

                                       si a tu lado me aguarda un querer
                                        no me importaban los aires ni el sol
                                       ni que arranques de cuajo la mies

Agnès glâneuse de nuevo va a nombrar
este desatendido microamor hacia el mundo

- Dos momentos son buenos
para espigar moluscos en la arena
después de las tormentas fabulosas
o tras la alta marea
(pues llega la tormenta de la trágica muerte
desordena lo alzado en las orillas
y has de salir descalza solitaria
a espigar los residuos de ánima y de ánimo
caracolas con un poco de carne
salada y comulgable)

Agnès ha regresado de Japón
la espigadora con su esportilla
entra en su casa vieja
trae su maleta llena de trouvailles
soy la hormiguita de los despojos
- Hormiguea y espiga, mas no pierdas
tu musical carácter de cigarra
canta la dignidad de lo que arrastra vida con ahínco
nadie escriba por ti la canción de lo útil

por eses trigos van ellas solas
y se engalanan con amapolas
la mujer espigante pasó a ser la anciana espigadora

Agnès filma su mano izquierda con una
cámara en la derecha
y encuentra a un animal autónomo.
- Me gusta ser vieja, creo . dice

Y como tiene muy buenos ojos
espiga a veces de los manojos

Varda espiga espigadores.
Me quisiera enrolar
                                 ser una de las suyas
en los silencios de horas despojadas
contra el mundo que eleva vacíos deslumbrantes
y luminosas nadas flatulentas
que fabrica furiosamente ruidos
y ficción de alimentos impolutos

ir detrás de las hoces
cuidando los descartes
espigas en el borde nodoso de la acequia
manzanas olvidadas en lo alto de las ramas
la carne irregular la piel manchada
los malformados frutos
las horas malvividas calientes y deformes
palabras averiadas
que olvidamos guardar
y están a la intempiere entre los surcos

levantarse y volverse a agachar
todo el día a los aires y al sol
si acricio lo roto entre mis manos
volverá a germinar

¿y si escribir no fuera
sino un himno al final de la cosecha
sino un recolectar despreocupadas
aceitunas o díscolas espigas
o un racimo en la helada

celebrar la segunda existencia de las cosas
recuperar la vida que acusaron de inútil
el amor del camino?

Ten memoria de mí, segadora


                  xxxxxxxxxx


RESPIGADORA

                                                                              Para Agnès Varda
                e para o LP La rosa del azafrán que havia na minha casa

A segunda existência das coisas
direito de respigar
le glâneur/la glâneuse

um édito do século dezasseis autorizava
os pobres a respigar depois da colheita
depois do pôr do sol
e antes de amanhecer

esta manhã muito cedinho
coros de respigadoras encerrados
num círculo negro de vinil
fome de trigo veste-te de canções
fome de canções sacia-te de paixões diminutas

pelos sulcos do restolho
a respigada
a rapariga-respiga passou a se a mulher respigante

                                                  se a teu lado me aguarda um desejo
                                                  não me importam os ares nem o sol
                                                  nem que arranques pela raíz a messe 

Agnès glâneuse de novo vai nomear 
este desatendido microamor pelo mundo

- Dois momentos são bons 
para respigar moluscos na areia
depois das tormentas fabulosas
ou a seguir à maré alta
(pois chega a tormenta da trágica morte
desordena o alçado nas margens
e irás sair descalça solitária
a respigar os resíduos de alma e de ânimo
búzios com um pouco de carne
salgada e comungável)

Agnès regressou do Japão
e respigadora com o seu abanador
entra na sua casa velha
traz a sua maleta cheia de trouvailles
sou a formiguita dos despojos
- Formigueia e respiga, mas não percas
o teu musical carácter de cigarra
canta a dignidade do que arrasta vida com afinco
ninguém escreva por ti a canção do útil

por esses trigos só elas vão
e enfeitam-se com papoilas
a mulher respigante passou aser a anciã respigadora

Agnès filma a sua mão esquerda com uma 
câmara na direita
e encontra um animal autónomo
- Gosto de ser velha, creio . diz

E como tem muitos bons olhos
respiga por vezes dos molhos

Varda respiga respigadores.
Quereria alistar-me
                                ser uma das suas
nos silêncios de horas despojadas
contra o mundo que eleva vazios deslumbrantes
e luminosos nadas flatulentos
que fabrica furiosamente ruídos
a ficção de alimentos impolutos

ir detrás das foices
cuidando das sobras
espigas na margem lodosa da acéquia
maçãs esquecidas no cimo dos ramos
a carne irregular a pele manchada
os malformados frutos
as horas mal vividas quentes e disformes
palavrasa avariadas
que olvidamos guardar
e estão na intempérie entre os sulcos

levantar-se e voltar a agachar-se
todo o dia aos ares e ao sol
se acaricio o rosto entre as mãos
voltará a germinar

e se escrever não fosse
senão um hino ao final da colheita
senão uma recolha de despreocupadas
azeitonas ou díscolas espigas
ou um rácimo na geada

celebrar a segunda existência das coisas
recuperar a vida que acusaram de inútil
o amor do caminho?

Lembra-te de mim, segadora

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